sábado, junho 28, 2008

A Via Láctea

A cidade de São Paulo, como qualquer outra, é um organismo vivo, complexo, que caminha, se desenvolve e integra um conjunto de outros organismos na formação de um outro maior e mais complexo. Essa premissa é trabalhada em A Via Láctea, porém, com a palavra "organismo" sendo substituída por "universo" - ou galáxia, como a metáfora com a via láctea sugere - , pois esta última, pela sua definição, abrange infitamente um elemento e o torna, além de complexo, caótico. No filme, a Grande São Paulo é um dos personagens, e como tal, interage com todos os outros. É justamente através da interação entre cosmos (micros ou macros) que o filme desenvolve um argumento quase filosófico a cerca das diferentes perspectivas que podemos ter a cerca de cada um desses universos, seja a cidade, personagens ou a relação entre estes.

Toda essa idéia é construída no desenrolar da estória de um casal. Heitor (Marco Ricca) é um escritor e professor de literatura, que namora com Júlia (Alice Braga), uma estudante de medicina veterinária e ex-atriz. Em certa manhã, após uma discussão boba entre o casal em que Júlia decide que eles devem "dar um tempo", Heitor toma a decisão de voltar e concertar a relação, mas para isso, tem que atravessar São Paulo, lidando com os mais comuns problemas oferecidos pela cidade, como o trânsito engarrafado e pedintes.

Interagindo com o universo da cidade ao mesmo tempo que se encontra completamente imerso em seu próprio, Heitor é utilizado pelo roteiro como o principal ponto de partida e o referencial para a reflexão do público. Através do personagem, entendemos a relatividade da importância de seus problemas; então, se para Heitor a preocupação em retomar com a namorada é maior que tudo, quando o olhamos sob uma perspectiva mais abrangente - como quando o comparamos ao caos de um cidade como São Paulo ou à própria magnitude da Via Láctea - percebemos a insignificância do problema do personagem. Da mesma forma, as preocupações de Heitor se tornam infinitamente grandes quando as percebemos sob a perspectiva do verdadeiro "universo" que é a relação entre Heitor e Júlia.

Dedicada em desenvolve as personagens nos primeiros momentos do filme, a direção de Lina Chamie foi eficiente ao perceber que Heitor deveria ser um personagem central ao qual público deveria se identificar, servindo como uma referência, já que posteriormente este seria submetido a um processo comparatório, no qual suas experiências seriam percebidas por nós de acordo com a perspectiva proposta pelo filme. Um vez que o público assume a postura de Heitor, o roteiro e a direção partem para a construção dessas diferentes perspectivas. Ora olhamos a pertubação e ansiedade de Heitor para reencontrar Júlia como um grande problema, ora o vemos como apenas um "nada" em meio ao caos de São Paulo.

Mais interessante ainda é a forma que o roteiro encontrou de mostrar como o universo que é a cidade de São Paulo pode ser resignificado se o obsevarmos pelo ponto de vista de Heitor. Em certos momentos, é quase interpretável que a cidade se comunica com o personagem, mas na verdade, estamos tão imersos na visão de Heitor, nesses instantes pontuais, que, assim como este, intepretamos tudo que acontece no cosmo maior que é São Paulo como se fossem fatos estritamente ligados a relação de Heitor e Júlia. Então, quando o professor olha uma mensagem romântica em um outdoor eletrônico, este é levado automáticamente a lembrar de Júlia. E o filme é competente em aparentar que a cidade "age" intensionalmente, assim como às vezes achamos que os fatos do nosso dia-a-dia querem nos dizer algo. Nos levando a observar por alguns segundos a Via Láctea, o filme nos faz quase esquecer da existência tão complexa que é a relação do casal, já que a imensidão da galáxia indiretamente sugere isso, num momento em que o roteiro praticamente completa a sua idéia. Paradoxalmente, somos levados a perceber a vida também por um olhar bem singelo em outro momento, quando a câmera assume subjetivamente a visão do gato de estimação de Júlia.

O princípio de tudo, o romance de Heitor e Júlia, é também muito bem desenvolvido nos primeiros minutos de A Via Láctea. Escolhendo uma edição recortada e complexa, presenciamos primeiro a discussão do casal, para depois vermos como se conheceram e os dias em que estes estiveram felizes. Os melhores momentos do filme, no entanto, ficam mesmo com as descrições em off que os personagens fazem um do outro utilizando o linguajar típico de suas profissões (parte fundamental na composição do universo de cada um), dessa forma, enquanto Júlia descreve Heitor com um olhar veterinário e científico, Heitor faz o mesmo com Júlia, mas com um olhar poético, tornando esses momentos incrivelmente cômicos. A atuação da dupla, aliás, é impecável. Particulamente, acredito que Marco Ricca seja um dos atores brasileiros mais carismáticos na ativa no cinema nacional, enquanto que Alice Braga, além de bela, é muito convincente e profissional, sempre mostrando saber lidar com personagens secundários, entendendo a importância destes e, consequentemente, obtendo êxito ao criá-los. Além da sensação constante de que Heitor pode perder Júlia, Braga consegue em poucos instantes e sem nenhuma palavra nos mostrar o quanto o relacionamento significa para a personagem.

Com algumas cenas filmadas no importante Teatro Oficina, tentei olhar ao máximo para o cenário, afim de contemplar a visita surpresa, que quase esqueci a cena que se passava. Com a participação deste, que é um dos maiores símbolos do teatro nacional, o filme ganhou valores altíssimos em meu .Ponto-de-Vista. . E é esse aspecto de dialogar com as outras artes que torna A Via Láctea um filme mais admirável. A importância dedicada a trilha sonora do filme, que explora uma variedade imensa de gêneros musicais, influenciando pontualmente nas emoções dos personagens, é tão grande quanto a relevância dada a fotografia. Esta última, então, é parte fundamental na apresentação da cidade, com belíssimos quadros e imagens de São Paulo, e uma aparência quase sempre nublada, alternando com as cores mais quentes dos flashs mais românticos sobre o casal.

Encerrando o filme ainda dentro da temática proposta por este, os créditos nos são mostrados de maneira criativa, no qual cada um dos nomes da equipe surgem de dentro do nome anterior, seguindo a raciocínio lógico desenvolvido pela estória. E nada mais legal e generoso da parte da diretora Lina Chamie do que não intitular-se como a dona do filme, na típica frase "Um filme de...", mas responsabilizando, nos créditos, a equipe como um todo pela criação desse belíssimo longa.

3 comentários:

Grupo Saber Viver disse...

Ótima matéria parebéns!!!

Halan disse...

"presenciamos primeiro a discussão do casal, para depois vermos como se conheceram e os dias em que estes estiveram felizes."

Isso me lembrou o filme 5x2 ou O amor em cinco tempos, onde o filme tem o roteiro de trás para a frente. Do fim do relacionamento de um casal para a sua origem.

O filme que você postou parece ser interessante, mas ainda não tive a oportunidade (talvez a disposição) para assistir.

Ótimo blog
Parabéns











http://descriticas.blogspot.com/

*Brisa disse...

Curti o blog,está otima a materia! X)

www.ideias-loucas.blogspot.com

=*