Vez ou outra o cinema brasileiro nos presenteia com filmes que são uma verdadeira análise da dinâmica entre a sociedade e o "cidadão" brasileiros. Escrevo "cidadão" entre aspas pois, nestes casos cinematográficos, os personagens que servem como parte do experimento dessa dinâmica, na maioria das vezes, não possuem os benefícios do direito de cidadão (no sentido mais amplo do termo) e nem cumprem seus deverem enquanto indíviduos integrantes do Estado; e ainda há aqueles que são completamente ignorados por essa sociedade, como se nem mesmo tivessem o direito a cidadania. Tratando com eficácia e realismo a vida de quem nasce em um completo contexto de exclusão social, Querô nos apresenta a mais um exemplo dessa dinâmica entre uma sociedade desequilibrada e personagens esfacelados pela realidade em que vivem. Atores, produtores e diretores fazem um ótimo trabalho de construção dessa realidade ao mesmo tempo em que fazem da sétima arte um motivo de inclusão social. Ao analisar Querô e perceber alguns aspectos do longa, resolvi dedicar o final desse texto para traçar uma importante e inevitável relação, que de certa forma, reflete nossa realidade.
Adaptado do romance Uma Reportagem Maldita de Plínio Marcos, Querô, que tem como título o nome de seu protagonista, tem início mostrando a morte de Piedade (Maria Luisa Mendonça), uma prostituta de um dos prostíbulos da região portuária de Santos. Após cometer suicídio, a personagem deixa seu filho, o Querô (Maxwell Nascimento), em situação de abandono pela região santista, onde cresce na marginalidade e em meio a uma realidade violenta. Um jovem amargurado e revoltado com seu próprio destino, Querô segue sua jornada tentando não entrar nas rédeas do crime, da polícia e da FEBEM.
Desenvolvendo a estória com dinamicidade, a edição é competente em deixar clara as elípses de tempo propostas pelo roteiro, ao mesmo tempo em que desenvolve um time ótimo que equilibra o rítmo do filme, mesmo quando a estória centra-se em eventos relativamente pequenos, mas de igual importância - como a tentativa do personagem em dar estabilidade em sua vida e seu passageiro interesse por uma religião. Da mesma forma, o roteiro é eficiente ao retratar a realidade de Querô, propondo situações comuns a pessoas que vivem essa vida e dando ênfase aos aspectos psicológicos. Portanto, após todas as dificuldades passadas pelo personagem na FEBEM, presenciamos os traumas que ficaram em forma de pesadelos, pânico e fobia; são detalhes que mal pensamos que essas pessoas podem sofrer, como se não possuíssem a mesma sensibilidades humana de quem tem uma vida digna.
Um jovem amargurado e revoltado com seu próprio destino, Querô segue sua jornada buscando integridade e uma vida mais justa, mas tendo como base as regras que mediam a vida de quem sofre o abandono, como a violência e o crime. Dessa forma, quando vemos o protagonista na busca de uma vida estável, nos surpreendemos que este veja em uma arma de fogo a saída para todos os seus problemas e, do mesmo modo, ficamos impressionados com o seu comportamento quando este entra na FEBEM, revelando pela primeira vez ao público que este personagem se trata de um verdadeiro representante deste mundo.
Contando com um elenco dedicado, Querô se beneficia com ótimas atuações, tanto por atores experientes, como por novatos que viveram na própria pele a vida de um abandonado. Capacitados por oficinas preparatórias, o elenco é resultado de um ótimo trabalho de preparação, revelando talentos inegáveis como o de Maxwell Nascimento, que carrega o filme do início ao fim com seu olhar revolto e ao mesmo tempo ingênuo. Vale lembrar também da atuação de Ailton Graça, no personagem Brandão, e de Milhem Cortaz, que mais uma vez faz um bom trabalho com o seu personagem Edgar, que mesmo pouco desenvolvido pelo roteiro nas suas motivações, consegue de cara aparentar não ser uma pessoa muito diferente de todas aquelas crianças da FEBEM. E é importante frisar, que sem a excelente direção de Carlos Cortez, nada disso funcionaria.
No que se refere a fotografia, Querô tem como resultado um excelente trabalho em que a fotografia, ressaltando junto com a Direção de Arte, expõe toda a pobreza e a ambientação triste daquela região. Posso citar, no entanto, apenas uma falha: a rápida paixão do protagonista pela jovem evangélica Lica (Alessandra Santos), que mais pareceu uma fórmula artificial, e um tanto incoerente para o mundo do personagem, de estimulação deste a sair daquela realidade. Ou seja, o filme que até então buscava razões psicologicamente bem fundamentadas para o comportamento dos personagens, nesse momento incluía uma personagem e uma paixão deslocada na estória só pra que nós acreditássemos por um instante que Querô tentaria mudar a sua vida.
Sociedade x Indivíduo
Em Tropa de Elite, o personagem do Capitão Nascimento é um policial que ver-se na obrigação de tomar atitudes violentas e criminais para dar um mínimo de equilíbrio a uma circusntância comum no Brasil. O personagem acha-se correto em suas atitudes e pontos de vista. Suas idéias e caráter foram formulados, desviados ou adaptados para aquela situação e já não existe delimitação entre o certo e o errado para quem é vítima e obrigado a viver em uma sociedade problemática. A polícia, na circunstância proposta pelo filme, é obrigada a tomar atitudes corruptas e violentas, trabalhando a idéia de que não existe de fato um culpado, como se fossem vítimas de um Estado caótico. Chegamos então a conclusão de que a dicotomia polícia versus bandido não funciona no Brasil, e que a situação, como sempre, é mais complexa por aqui. Mas o que essa realidade demonstrada em Tropa de Elite e em outros filmes e documentários brasileiros tem a ver com a de Querô?
Como disse no início do texto, Querô é mais um exemplo de filme brasileiro que retrata a complexa dinâmica entre sociedade desequilibrada e personagens esfacelados pela realidade em que vivem; e, assim como o Capitão Nascimento, um policial corrupto, ou um sequestrador de ônibus com um histórico mizerável, Querô não tem uma opção, mas sim uma obrigação de viver em tais circunstâncias, como se fosse um papel imposto a ele. Dessa forma, mesmo quando o personagem tenta estabilizar sua vida e tornar-se uma pessoa comum, a sua identidade de um menor abandonado, um marginal, o impede de ter qualquer êxito.
Querô é um personagem simbólico e representativo, que também vive dentro da falta de limites entre o certo e errado, comportando-se da melhor forma que lhe cabe para sobreviver, em uma sociedade que o abandona e ignora. Se o personagem rouba e mata, nada mais faz do que tentar encontrar soluções para sua realidade imutável e condenável. Desse ponto de vista, o longa apresenta uma visão racional a respeito dessa realidade, e paradoxialmente sensível, em relação ao personagem. Talvez o mais belo desse filme seja o projeto por trás deste, que se estende à oficinas de inclusão social e capacitação de jovens em situação de abandono.
6 comentários:
Retribuindo a visita...
=P
Valeu pelo apoio kra..
e, Parabéns pelo Blog...
Os filmes brasileiros sempre mostram esse lado marginalizado do Brasil, pois isso NÃO SUPORTO os filmes brasileiros.
O seu blog está muito bom. :-)
http://showyourmusic.blogspot.com/
boa narrativa sua, vou assistir, fiquei curiosa...
... ultimamente os filmes estão focando essa problematica social, onde todos nós somos culpados, o sistema é assim, mas quando existe uma ruptura de algo, mesmo que não se alcance o objetivo inicial, há uma mudança consideravel no rumo das coisas,
...mas infelizmente, o brasileiro não capta essas informações, o que ele tira de um filme como o Tropa de Elite, (girias, musicas que ficam repetidamente sendo tocadas e cantadas por todo canto), mas a essência do filme eu creio que uma grande maioria não conseguiu captar.
Racandro, adorei a análise e, pior, tenho que me render ao paradigma de Tropa de Elite.
De fato, já não há mocinho X bandido, mas sim toda uma questão social caótica, em que o mocinho ora é bandido e este ora é mocinho.
Realmente , não lia seu blog,dado que recebo tantos e-mails com enigmas ou sedutores convites p acessar algo, mostrando sempre uma crítica que no fim repete o velho chavão,ou o dualismo do mal-mal e bem-bem de uma visão personalista que descaracteriza uma crítica(...)E de repente acessei, e não é que é diferente?
Gostei.
Parabéns
Muito boa sua análise, Caio.
Como espectador envolvido com a trama, o que mais me perturbou foi a questão da responsabilidade para com essas "crianças" degredadas e de que forma podemos mudar tal situação até nos emudecermos e perceber que é difícil apontar uma solução ou 01 culpado a quem queremos julgar ou crucificar por tal situação.
Sobre a análise técnica do filme, realmente fiquei curiosíssimo em saber como se deu o processo de preparação de elenco desses jovens atores tão convincentes. Espero que em DVD tenham essas informações.
Desconhecia também os bastidores do "por trás do filme" e as oficinas de inclusão social. Melhor seria se as oficinas não tivessem um prazo de validade e pudesse contribuir REALMENTE com a inclusão social desses jovens não por assistencialismo, mas por competência.
Abraços
www.baratos-afins.blogspot.com
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